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Foto do escritorDavid Costa

Desculpa Carl Sagan!


Carl Sagan foi, provavelmente, o cientista mais famoso da década de 80/início dos anos 90. Cientista, escritor, professor de astronomia e ciências espaciais, foi condecorado por duas vezes pela NASA, tendo ganho também um Pulitzer, entre outros prémios e reconhecimentos. Foi acima de tudo um cético, um defensor do pensamento crítico e científico, alertando para a “treta” e os perigos que dela advêm. No seu livro Um Mundo Infestado de Demónios, Sagan expõe e desvenda vários mitos e falsas crenças (desde encontros alienígenas a questões terapêuticas), enquanto apresenta o método científico como solução para um mundo iluminado. Li, ou melhor, devorei o livro. Simplesmente fantástico, uma leitura simples e acessível, com conteúdo de real valor, pelo menos para quem procura o real significado das “coisas”.

O livro prendeu a minha atenção logo ao virar da capa, onde o autor o dedica ao neto, Tonio, numa esperança de que este possa crescer num “mundo sem demónios e cheio de luz”.

Sagan haveria de ficar bastante desgostoso se soubesse que, com o passar dos anos e a respetiva evolução tecnológica e social, não só esses demónios permaneceram, como ainda foram criados outros, talvez ainda mais maléficos.


A evolução da transmissão da palavra


Em termos históricos, numa Era anterior à digital, o conhecimento era passado essencialmente através da “palavra falada”, já que o conhecimento científico (a “palavra escrita”) estava enclausurado nas bibliotecas e noutras estantes muitas vezes inacessíveis à população em geral. A criação e expansão mundial da internet veio colmatar essa limitação, possibilitando o acesso a todo o tipo de informação de forma instantânea. E qual o problema disso? Leiam novamente a frase acima: “o acesso a todo o tipo de informação”! Ou seja, o bom/verdadeiro/revisto/científico e o mau/falacioso/tendencioso/treta, misturam-se numa trama impercetível e ludibriadora para o comum leitor. Se o primeiro ponto visa informar (livre de preconceitos e pré-conceitos), o último acaba por fazer exatamente o oposto, propositadamente ou de forma inconsciente.

Sagan manteve uma batalha constante ao longo da sua vida contra a escuridão, exultando e procurando explicar o sentido do pensamento científico, pese embora a ciência nem sempre ter seguido este caminho crítico, desviando-se do seu propósito inúmeras vezes. Sim, também ela foi e ainda é influenciada pela tendência, pelo pré-conceito, pela crença, pela preguiça, pelo orgulho, pela cobiça e pela ganância (num “mundo infestado de demónios”, não será de estranhar a presença de alguns pecados mortais!).

Chegamos então à verdadeira questão: como saber separar o trigo do joio? Como saber em quem confiar? Devemos desconfiar de tudo e todos? Mais à frente vamos procurar saber um pouco mais através das palavras do próprio Carl Sagan.


Método Científico

“O método científico […] é muito mais importante que as descobertas científicas”.

No que ao Fitness diz respeito, na minha opinião, os próprios profissionais de Exercício Físico acabam por ter a sua cota parte de responsabilidade no processo, pois “é muito mais fácil apresentar de modo atraente a sabedoria destilada por séculos de interrogação […] que pormenorizar o complicado aparelho de destilação. O método científico, por maçador e espinhoso que pareça, é muito mais importante que as descobertas científicas”. Ou seja, o importante será perceber o método, até porque as descobertas estarão sempre dependentes dele (arrisco mesmo em afirmar que as conclusões nunca estão erradas, desde que estejam de acordo com o processo e não sejam enviesadas por crenças e pré-conceitos; o que poderá estar errado é o próprio método/processo em si).

Para evoluir, “a ciência alimenta-se de erros, que vai eliminando um a um […] formula hipóteses para poder refutá-las […] avança às apalpadelas e em passos hesitantes em direção a um conhecimento mais perfeito […] essa refutação é fundamental para o progresso científico”. Sim, “a ciência está longe de ser um instrumento de conhecimento perfeito”, mas ainda assim é “o melhor de que dispomos”.


Etimologia

No capítulo homónimo da sua obra, Carl Sagan aborda a etimologia de duas palavras, o que até poder-se-á afirmar como sendo um resumo do livro: demónio significa conhecimento em grego” e ciência significa conhecimento em latim” – o que não deixa de ser curioso!


“o que um homem desejaria que fosse verdade é aquilo em que mais prontamente acredita”

De facto, verificamos a faceta demoníaca do conhecimento vincada no ser humano, “pois o que um homem desejaria que fosse verdade é aquilo em que mais prontamente acredita. Por conseguinte, rejeita coisas difíceis por não ter paciência para investigar […] pois estas limitam a esperança”. Ou seja, nascemos com este timbre biológico de preguiça intelectual, mas não deveríamos ficar dele refém, na medida em que “se não exercermos um mínimo de cepticismo, se formos crédulos, isso mais tarde sair-nos-á caro”. De facto, “o pensamento céptico é o meio de construir e compreender um argumento racional […] de reconhecer um argumento fraudulento ou falacio”, da mesma forma que “devemos estar dispostos a mudar de opinião, quando isso se justificar, perante o aparecimento de novas provas”, pese embora “se uma nova ideia resiste à análise […] recebemo-la de braços abertos, embora com cautela”. Ou seja, não devemos abordar um qualquer assunto como sendo detentores de uma verdade absoluta e derradeira, mas sim de uma verdade transitória e momentaneamente mais verdadeira (passe o pleonasmo) que as restantes.

Mas a sombra é apetecível e encorajadora, já que “a ignorância gera mais frequentemente confiança que o conhecimento” – qual efeito Dunning-Kruegger!

Quem se encontra nesse patamar diz o que quer sem prova ou fundamento e, muitas vezes, sem ser confrontado por quem tem a evidência científica do seu lado (porque estes não querem perder tempo com conversas sem nexo). Aos últimos Sagan adverte que não deverão permanecer inertes na sua ação, pois “cada assentimento silencioso o encorajará a fazer o mesmo outra vez e que cada rejeição vigorosa o fará, na vez seguinte, pensar duas vezes”. Contudo, deverá haver cautela, na medida em que poderemos “favorecer um clima geral em que o cepticismo é considerado indelicado, a ciência aborrecida e o pensamento rigoroso enfadonho e inadequado”.


“quem for apenas céptico não terá acesso a novas ideias”

Acima de tudo há que ter cuidado para não cair nos extremos do conhecimento, pois “quem for apenas céptico não terá acesso a novas ideias”, assim como quem “aceitar de forma acrítica qualquer noção, ideia ou hipótese é o mesmo que não saber nada”. Ou seja, “o mais sensato será procurar um equilíbrio prudente”.

De facto, “a cura para um argumento falacioso é um argumento melhor e não a supressão das ideias”, da mesma forma que “se conhecermos apenas o nosso lado do argumento, dificilmente conheceremos o próprio argumento”, o qual “não sujeito à prova da existência”, é “uma verdade pálida e sem vida”.

A globalização, internet e redes sociais vieram alargar a quantidade e a acessibilidade ao conhecimento, mas a qualidade nem sempre acompanhou esse crescimento exponencial. E porquê? Porque “as abordagens cépticas são muito mais difíceis de encontrar, pois o cepticismo não se vende bem [...] a pseudociência [e a ignorância, acrescento eu] responde a necessidades emocionais fortíssimas que a ciência muitas vezes deixa sem resposta”. O autor vai ainda mais longe, afirmando que “o cepticismo desafia as instituições estabelecidas. Se ensinarmos toda a gente […] a adquirir o hábito de pensar de forma céptica, é provável que as pessoas não venham a limitar o seu cepticismo [...] talvez comecem a fazer perguntas incómodas […] talvez desafiem as opiniões daqueles que se encontram no poder”, o que não convém a quem lá está.


Deteção de tretas


No seu livro, Carl Sagan apresenta alguns instrumentos que podemos utilizar para poder avaliar a veracidade de um argumento: “haver uma confirmação independente”; verifique a representação “de todos os pontos de vista”; tenha em conta que “os argumentos apresentados por autoridades na matéria têm pouco peso”; garanta que se “pense em mais de uma hipótese”; procure “não ficar muito preso a uma hipótese só porque é sua”; sempre que possível “quantifique”; assegure que numa “cadeia de argumentos, todos […] têm de funcionar”; “quando confrontados com duas hipóteses […] escolher a mais simples”; lembre-se que “as proposições impossíveis de verificar e de refutar não valem grande coisa”.


Chegando ao final deste texto, podemos concluir que o pensamento científico e cético envolve uma boa dose de estudo, comparação e análise, desprovidos de crenças e pré-conceitos, tudo para “não aceitar de modo acrítico qualquer coisa que nos digam; tanto quanto possível, não nos deixarmos transportar pelas nossas esperanças, fantasias e convicções não confirmadas; ver-nos a nós próprios como realmente somos”.


Posto isto, pense bem quando chegar ao ginásio e escolher o seu Personal Trainer. Irá querer ser acompanhado(a) por quem possui a última moda do fitness (o último equipamento e/ou método de treino, normalmente com um nome apelativo; que grite aos 7 ventos "VAI, TU CONSEGUES!", "NO PAIN NO GAIN"!!!; ou ainda alguém cujo conselho sempre que reporta algum desconforto no exercício seja "faz devagarinho")? Ou irá preferir um verdadeiro profissional que avalie a sua disponibilidade atual para cada exercício, adeqúe o exercício a si (e não o contrário) - assim como as restantes componentes do treino (volume, intensidade, descanso...), e, acima de tudo, que não seja prepotente ao ponto de passar uma imagem de sabedor absoluto, mas sim de humildade ao ponto de dizer "não sei", "não tenho a certeza", "vou precisar de estudar mais sobre o porquê desta situação"?


Após esta leitura, cabe a si a decisão.

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